Introdução

A absorção das chamadas novas tecnologias para aprimorar o instrumento de adjudicação do Direito, o processo,  ocorrida na última década, é marcante. O já feito deve ser aplaudido. Os técnicos avançaram até onde lhes foi permitido e, em muitos casos, foram além da permissão legal, quando os juristas lhes solicitaram[1]. Por outro lado, por causa da velocidade da evolução tecnológica, tudo que surge de novo, já nasce obsoleto. Nesse cenário, balizas estratégicas claras são fundamentais para permitir a incorporação progressiva dos avanços tecnológicos  e  a otimização contínua da prestação jurisdicional.

Este artigo, escrito para os juristas, conclama-os a  posicionarem-se estrategicamente  em relação ao processo eletrônico[2] e ao que o legislador chamou de Sistema Eletrônico[3] de Processamento de Ações Judiciais  - SEPAJ[4], no artigo 8º da Lei 11.419/2006[5]. Está escrito pensando no processo do trabalho mas, certamente, as ideias expostas aplicam-se a qualquer SEPAJ.
A lei 11.419/2006 traz as mais importantes aberturas para a incorporação efetiva da tecnologia no instrumento do processo, o SEPAJ, desde a Lei 9.800/99[6], que marcou o início do fenômeno.

Por isso, os juristas são provocados a dizerem:

(i) até onde desejam a tecnologia  e seu principal efeito,  a automação, no processo e
(ii) até onde podem caminhar os tecnólogos para obter o nível de automação especificado.  
Para esse exercício visionário (estratégico), os operadores do Direito, especialmente magistrados e advogados, devem (i) informar-se, num nível adequado, sobre as novas tecnologias, para perceber-lhes as potencialidades e (ii) assumir o papel que lhes cabe de definir como é o processo que desejam com essas tecnologias.  Os técnicos surpreenderão nas respostas, dadas no plano tático.

O Direito já se acostumou com a explicitação de macrodiretrizes pela via de normas principiológicas, “ [...] seguindo a cartilha do construtivismo principiológico inaugurado por Ronald Dworkin[7] e absorvido pelo Direito continental constitucional europeu a partir da década de 70 do século passado, de onde se espraiou para a teoria geral do Direito” [8] [9] [10].  No caso do processo eletrônico, muitos autores[11] têm se ocupado do tema princípios, porque os conflitos de interesse gerados pelas inovações vão esbarrar em vazios normativos onde a solução será feita pelo recurso a essas normas[12].

Mas os princípios ventilados por tais autores distinguem-se dos aqui propostos, porque aqueles estão mais voltados às consequências jurídico-processuais da incorporação da tecnologia da informação ao procedimento – fenômeno que o legislador chama de “informatização do processo judicial”[13].

Os quatro princípios apontados no final deste trabalho, por outro lado, ocupam-se do perfil que – na visão do autor – os juristas deveriam  pretender para um SEPAJ: máxima automação, extraoperabilidade[14],  alimentação por dado em formato pertinente para a máxima automação (sempre que possível)  e desenvolvimento a partir da diretriz fundamental de proporcionar o máximo apoio à atividade judicante estrita: o ato de julgar.  

Eles são comandos[15] dirigidos aos tecnólogos, como se se dissesse: “se vocês vão desenvolver um sistema processual, nós o queremos assim...”.  Imbricam-se aí a ordem e a autorização e, por trivial que pareça essa explicitação dos princípios, pode-se afirmar com segurança que a criatividade dos técnicos têm sido tolhida porque ela não foi feita.

Pelas palavras utilizadas em sua enunciação, vê-se que  os princípios não trazem  novidades para os técnicos, salvo a determinação/autorização para que apliquem, na construção de um SEPAJ,  o que já dominam.  Ou seja, ponham o estado da arte das novas tecnologias a serviço do processo.  

Mas esses princípios tocam em questões altamente sensíveis para os juristas e a interpretação dos artigos da Lei 11.419/2006 ganhará contornos novos se eles forem enunciados e adotados pelos operadores do Direito.  

Um sistema processual concebido sob os princípios aqui explicitados avançará, certamente, em conhecimento e inteligência. Um processo suportado por essa ferramenta  será mais  apto a (i) instrumentalizar o Poder Judiciário para, usando eficazmente os meios tecnológicos disponíveis para acelerar a tramitação processual,  responder aos jurisdicionados em tempo razoável, (ii) aliviar o trabalho de advogados, juízes e servidores, deixando-lhes para fazer exatamente aquilo que somente eles podem fazer e  (iii)  concretizar o comando constitucional do amplo acesso à Justiça, na acepção mais abrangente.  Deborah L. Rhode, reportando-se à realidade norte-americana  de forma que para o Brasil é inteiramente pertinente,  diz que a igual proteção da lei  “[...] é um dos princípios legais mais orgulhosamente proclamado e mais largamente violado da América. Ele embeleza a entrada das cortes, as ocasiões cerimoniais, e as decisões constitucionais. Mas [...]  milhões de americanos carecem de qualquer acesso à justiça [...] “[16]. [tradução livre]

 Nesse sentido, portanto, advogados e juízes têm muito a demandar (e autorizar!)  à área de tecnologia. É chegado o momento de esses atores processuais, entendendo o alcance e as possibilidades da tecnologia, dizerem como é o sistema processual que almejam, com o uso do qual farão o que de fato lhes deve incumbir e deixarão aos instrumentos tecnológicos tudo aquilo que possa, com segurança, rapidez e eficácia, ser executado por estes.

Não há aqui, marque-se bem, a pretensão de sugerir sistemas automáticos de decisão,  nos moldes sonhados  pelos teóricos da Informática Jurídica nas décadas de 70 e 80[17].  Ao contrário, as propostas estão calcadas nas possibilidades reais e atuais das chamadas novas tecnologias e das necessidades prementes e perceptíveis do processo.



[1] Consigne-se que o STDI – o sistema de peticionamento eletrônico implementado, em 1999,  pelo TRT da 12ª Região, já dispensava a juntada dos originais, a posteriori,  apesar da dicção expressa da lei daquele ano (Lei 9800/99), em sentido contrário. Na época, o TRT (os juristas) decidiu autorizar a  dispensa da juntada e os técnicos, com os recursos da época, puseram a ideia em prática, com excelentes resultados.
[2] Parece que o mais pertinente seria a utilização da expressão “procedimento eletrônico”, pois o que está em questão é “[...]  o meio extrínseco pelo qual se instaura, desenvolve-se e termina o processo; é a manifestação extrínseca deste, a sua realidade fenomenológica perceptível.” CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, et al. Teoria Geral do Processo. 17.ed. São Paulo:Malheiros, 2000. p. 277.  No entanto, adota-se a terminologia do próprio legislador posta na Lei 11.419/2006, em vários dispositivos do capítulo III -  Do processo eletrônico.   
[3]  “[...]assim denominado porque seu procedimento utiliza meios  físicos que são o objeto de estudo da parte da física chamada eletrônica[...] “.  PEREIRA, S. Tavares.  O processo eletrônico e o princípio da dupla instrumentalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1937, 20 out. 2008.  Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp? id=11824>. Acesso em: 16 mar. 2009. p. 1.   A eletrônica é “ a parte da física dedicada ao estudo do comportamento de circuitos elétricos que contenham válvulas, semicondutores, transdutores etc, ou à fabricação de tais circuitos.” FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Eletrônico Século XXI. Versão 3.0. São Paulo: Lexikon Informática, 1999.
[4] O extenso é da lei citada. A sigla é proposta para facilitar a referência ao gênero dos sistemas eletrônicos de processamento de ação judicial. Há vários deles em uso (PROJUDI, por exemplo) e outros em vias de entrar em produção (SUAP do CSJT, PROVI/SC). Eles podem ser classificados em grupos ou espécies, segundo algumas características básicas como:  nível de automatização adotado nas rotinas de secretaria, técnicas de interação com os advogados etc. 
[5] BRASIL. Lei nº 11.419,  de 19 de dezembro de 2006. Dispõe sobre a informatização do processo judicial; altera a Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 20 dez. 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei11419.htm>.
[6] BRASIL. Lei nº 9.800,  de 26 de maio  de 1999. Permite às partes a utilização de sistemas de transmissão de dados para a prática de atos processuais.  Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 26 maio 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9800.htm>. Acesso em: 26 set. 2008.
[7] A visão dworkiana que inovou, de forma irreversível, a teorização do Direito pela via da inclusão dos princípios,  está bem marcada por H. L. A. Hart, o último dos grandes positivistas,  no pós-escrito incluído na obra O conceito de Direito trinta e dois anos depois da publicação: “Dworkin é credor de grande reconhecimento por ter mostrado e ilustrado a importância desses princípios e o respectivo papel no raciocínio jurídico, e, com certeza, eu cometi um sério erro ao não ter acentuado a eficácia conclusiva deles.” HART, H. L. A.  O conceito de direito.  Tradução de A. Ribeiro Mendes.  2ed. Lisboa:Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. p. 325.
[8] PEREIRA, S. Tavares.  O processo eletrônico e o princípio da dupla instrumentalidade, p. 1.
[9] Sobre a evolução dos princípios na teorização do Direito ver BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9.ed. São Paulo:Malheiros, 2000. p. 228-266.
[10] Para mais detalhes sobre a importãncia dos princípios na atual teoria constitucional, remete-se o leitor aos artigos: PEREIRA, S. Tavares; ROESLER, Cláudia Rosane.  Princípios, constituição e racionalidade discursiva.  Universo Jurídico. Disponível em: <http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/ default.asp¿action=doutrina&coddou=5670>. Acesso em: 26 set. 2008 e MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Hermenêutica principiológica e ponderação de direitos fundamentais: os princípios podem ser equiparados diretamente a valores?. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1453, 24 jun. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/ doutrina/texto.asp?id=9952>. Acesso em: 07 abr. 2008.
[11] Destaca-se, por todos eles, BOTELHO, Fernando Neto. O processo eletrônico escrutinado – parte VIII. Disponível em: http://www.aliceramos.com/view.asp?materia=1336. Acesso em: 23 set. 2008. O autor cita os princípios da universalidade, da ubiquidade judiciária,  da publicidade especial, da economia processual especial, da celeridade especial, da unicidade e uniformidade e da formalidade automatizada. Pela própria nomenclatura vê-se que vários princípios do processo são alcançados pela tecnologia e ganham novos contornos.  Ver, também, PEREIRA, S. Tavares.  O processo eletrônico e o princípio da dupla instrumentalidade. Esse princípio tem o seguinte enunciado: “Princípio da dupla instrumentalidade: a tecnologia é instrumento a serviço do instrumento – o processo -  e, portanto, sua incorporação deve ser feita resguardando-se os princípios do instrumento e os objetivos a serviço dos quais está posto o instrumento.”
[12] Écio Oto Ramos Duarte situa essa questão ao falar da elucidação (resolução) dos “[...] casos difíceis (hard cases), onde a contraposição das argumentações se situa no âmbito do sopesamento de valores.” DUARTE, Écio Oto Ramos.  Teoria do discurso e correção normativa do direito. São Paulo:Landy, 2003. p. 54.
[13] BRASIL. Lei nº 11.419,  de 19 de dezembro de 2006, art. 1º, por exemplo. 
[14] Termo proposto, pelos motivos expostos no item 7, adiante,  para designar a interação digital do SEPAJ com os demais sistemas do mundo circundante. Considerando-se apenas a área tecnologia, seria desnecessário.  
[15] Com o sentido atualmente reconhecido aos princípios, como comandos de otimização. Nesse sentido, vejam-se: (i) Robert Alexy e Garzon Valdes, para quem  princípios são comandos de otimização que determinam que se realize algo na maior medida possível, em consonância com as condições jurídicas e reais existentes (ALEXY, Robert; GARZON VALDES, Ernesto. Teoria de los derechos fundamentales.   Madrid:Centro de Estudios Políticos Y  Constitucionales, 1993, p. 86-87); Ronald Dworkin, que introduziu os princípios na teorização do Direito, para quem eles se associam à dinâmica das ordens jurídicas duradouras, pois as tornam moldáveis;” (DWORKIN, Ronald. O império do direito.  São Paulo:Martins Fontes, 1999. p. 488);   e ainda, com visões semelhantes, HESSE, Konrad.  Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha.  Tradução de Luiz Afonso Heck. Porto Alegre:Sérgio Fabris, 1998. p. 61 e  CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição.  6.ed.  Coimbra:Almedina, 1995. p. 1148-1149.   E, ainda, PEREIRA, S. Tavares; ROESLER, Cláudia Rosane.  Princípios, Constituição e Racionalidade Discursiva. In: II Mostra de Pesquisa, Extensão e Cultura do CEJURPS e MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Hermenêutica principiológica e ponderação de direitos fundamentais.
[16] RHODE, Deborah L.   Access to justice.     Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 3. Texto original: “[…] is one of America´s most proudly proclaimed and widely violated legal principles. It embellishes courthouse entrances, ceremonial occasions, and constitutional decisions. But […]  millions of Americans lack any access to justice […] “.
[17] “No início desta década [1980], esperava-se que Estados Unidos, Alemanha e Japão, países que mais investiram em robótica, possuíssem um total de 250 mil robôs. Mas a população de robôs dos três países não passa de 160 mil unidades; apertando um pouquinho, caberiam no Estádio do Maracanã. O número de robôs cresceu menos do que se previa justamente por causa da falta de habilidade das máquinas em lidar com situações imprevistas, o que desestimulou muitos usuários em potencial.” [sem grifos no original]  OLIVEIRA, Lucia Helena de. Doutor robô. Revista Superinteressante, São Paulo, 4.ed, jan. 1988. Disponível em: <http://super.abril.com.br /superarquivo/ 1988/conteudo_111012.shtml>. Acesso em: 04 mar. 2009. Essas limitações continuam muito presentes  três décadas depois.